Análise da medida cautelar na ADI 7222, que suspendeu os efeitos da lei sobre o piso dos profissionais da enfermagem

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O advogado Rafael Sales comenta a Liminar concedida na ADI 7222, pelo Min. Luís Roberto Barroso (STF), sobre o piso nacional dos enfermeiros e técnicos de enfermagem.

Por Rafael Sales
Advogado Trabalhista. Mestrando em Direito pela UFC, membro do GRUPE/UFC.

 

Assim que passou a vigorar o piso salarial previsto na Lei 14.434/2022, de R$ 4.750,00 para enfermeiros, de R$ 3.325,00 para técnicos de enfermagem e de R$ 2.375,00 para auxiliares de enfermagem, criou-se um cenário de comemoração e preocupação.

A comemoração decorre de uma luta de cerca de três décadas dos profissionais de enfermagem que almejavam ter um piso nacional que garantisse uma remuneração mais digna, compatível com a dedicação e coragem de uma das classes que esteve à frente da luta contra a pandemia do Covid-19. Assim, no pós-pandemia, a criação do piso nacional demonstrou o reconhecimento daqueles que literalmente doaram suas vidas em prol da saúde coletiva, sendo justo o reconhecimento de uma remuneração melhor, ainda que não seja a ideal.

Na contramão das comemorações, estavam as entidades hospitalares privadas e públicas, que alegam não ter tido tempo de se preparar financeiramente para a nova realidade salarial, o que, por corolário, poderia causar desemprego em massa no setor e até mesmo o fechamento de algumas empresas, sem falar naqueles que deliberadamente anunciavam que iriam descumprir a determinação legal.

Para os setores econômicos privado e público, em especial os Municípios e Estados, todas as atenções foram voltadas para a ADI 7222 MC/DF, ajuizada pela Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços – CNSaúde, que pleiteia a declaração de inconstitucionalidade da norma em questão, alegando, dentre outros pontos, que:

  1. Teria havido procedimento pouco convencional no trâmite da lei, a qual não teria sido enviada diretamente para a sanção presidencial, mas teve a tramitação paralisada para aguardar a aprovação da PEC 11/2022, que deu origem à EC 124/2022, que, por sua vez, teria o objetivo de corrigir vício de iniciativa insanável contido no projeto de lei.
  2. Do ponto de vista de aplicação ao setor público, defende a Confederação que a lei seria inconstitucional porque lei que determina o aumento de despesas de servidores públicos é de iniciativa privativa do Chefe do Executivo e que a superveniência da EC 124/2022 não alteraria essa conclusão.
  3. O ato normativo desrespeitaria a auto-organização financeira, administrativa e orçamentária dos entes subnacionais, tanto por repercutir sobre o regime jurídico de seus servidores, como por impactar hospitais privados contratados por Estados e Municípios para realizar procedimentos pelo SUS. Aponta, assim, que a lei dificultaria a execução integral dos contratos.
  4. O estudo dos custos dos novos pisos não teria sido adequado, apontando o valor de R$ 16 bilhões por ano, que não representaria o valor correto, pois desconsideraria outros fatores, o que acarretaria um desrespeito ao art. 169, parágrafo 1º, I, da Constituição Federal, e o art. 113 do ADCT.
  5. Haveria violação aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, apontando diversos efeitos práticos decorrentes da aplicação da lei, como por exemplo o esvaziamento da liberdade de contratação e negociação de forma muito restritiva.

Todos estes argumentos foram apresentados na ADI 7222, que foi distribuída para o Ministro Luís Roberto Barroso (STF), o qual, em despacho inicial, determinou a intimação dos diversos órgãos demandados para se manifestar sobre o teor da ação.

Após as manifestações, o Ministro Barroso, no dia 04.09.2022, proferiu decisão cautelar, que tem natureza jurídica de proteger o processo principal. É como os processualistas definem: “A cautelar é o instrumento do instrumento”. Ou seja, a medida cautelar é deferida para proteger o pedido veiculado no processo principal. Em termos práticos, se os salários do mês de agosto fossem pagos e não tivesse sido respeitado o piso, todas as entidades estariam descumprindo a nova legislação, ficando sujeitas a uma série de ações judiciais e administrativas.

Do ponto de vista do mérito da decisão, o Ministro Barroso (STF) destacou de início que os trabalhadores urbanos e rurais têm direito a um piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho, conforme art. 7º, V, da Constituição Federal. Sustentou, ainda, que de forma excepcional a União pode estabelecer pisos nacionais, desde que haja previsão constitucional para tanto, tendo mencionado o caso dos professores e dos agentes comunitários de saúde.

Em sua decisão, para afastar a alegação de que apenas o chefe do executivo poderia iniciar o projeto de lei sobre piso salarial, destacou que há precedente no STF, no caso dos professores, cuja lei fora de iniciativa do então senador Cristovam Buarque, e que o STF já se posicionou pela constitucionalidade da lei. Todavia, ponderou que deve ser verificado se o vício de iniciativa legislativa deve ser analisado quando da proposição da legislação ou quando da sanção presidencial, tendo em vista que o vício de iniciativa foi corrigido apenas com a edição da Emenda Constitucional nº 124/2022, posterior à aprovação da lei, que demorou cerca de 2 meses para ser enviada à sanção presidencial.

Noutro ponto, analisando se estaria havendo interferência na auto-organização financeira e administrativa de Estados e Municípios, o ministro Luís Roberto Barroso levou em consideração relatórios do DIEESE, que apontavam que, diretamente, via servidores próprios, e indiretamente, via contratos com particulares via SUS, Estados e Municípios seriam bem mais atingidos com a nova lei do que a União, o que foi um fator importante para a concessão da medida cautelar. Segundo o Ministro, ditos relatórios apontam a necessidade de um incremento financeiro de R$ 4,4 bilhões necessário ao cumprimento dos pisos ao ano para os Municípios, de R$ 1,3 bilhões ao ano para os Estados e de apenas R$ 53 milhões ao ano para a União.

O último ponto que foi utilizado para fundamentar sua decisão se referiu aos aspectos da razoabilidade e proporcionalidade da lei, tendo o ministro feito destaque especial para duas situações:

  1. O risco de dispensas em massa de profissionais da enfermagem, notadamente no setor privado;
  2. O prejuízo à manutenção da oferta de leitos e demais serviços hospitalares, inclusive no SUS.

Ademais, o ministro ainda fez destaques sobre a diferença na adaptação entre os Estados da Federação para a implementação do piso salarial, enquanto no Estado de São Paulo para o atingimento do novo piso os enfermeiros precisam de um aumento médio de 10%, no Estado da Paraíba os enfermeiros precisam de um aumento médio de 131%. Os técnicos de enfermagem em São Paulo precisam de um aumento médio de 40%, enquanto na Paraíba teria que ter um aumento médio de 186%.

Em razão de todos estes pontos, o ministro destacou que essas dificuldades poderiam impactar a promoção do princípio constitucional da busca pelo pleno emprego e do direito constitucional à saúde.

Ao fim, concedeu a medida cautelar para suspender os efeitos da Lei nº 14.434/2022, por tempo indeterminado e concedeu prazo de 60 dias para os intimados apresentarem dados que ajudem a esclarecer os impactos da lei nos seguintes pontos:

  1. a situação financeira de Estados e Municípios, em razão dos riscos para a sua solvabilidade. Intimando, para tal fim, o Ministério da Economia; os vinte e seis Estados-membros e o Distrito Federal; e a Confederação Nacional de Municípios (CNM);
  2. a empregabilidade, tendo em vista as alegações plausíveis de demissões em massa. Intimando, para tal fim, o Ministério do Trabalho e Previdência e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS);
  3. a qualidade dos serviços de saúde, pelo alegado risco de fechamento de leitos e de redução nos quadros de enfermeiros e técnicos. Intimemando, para tal fim, o Ministério da Saúde; o Conselho Nacional de Saúde (CNS); o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass); o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems); e a Federação Brasileira de Hospitais (FBH).

Em nossa concepção, apesar de ser uma luta justa, apesar da promessa de um piso salarial nacional se arrastar por décadas, a decisão do Ministro Barroso nos pareceu acertada, ao menos por enquanto. Dentro do prazo estabelecido, as informações constantes nos dados que serão fornecidos ajudarão a amadurecer a implementação do piso salarial da categoria, deixando claras as fontes de custeio, com os valores necessários para esta implementação. Nos próximos meses, as discussões em torno da matéria devem trazer dados concretos que auxiliem o Poder Judiciário na tomada de decisão, de forma a afastar ou mitigar os efeitos colaterais suscitados na ADI em questão, em especial no que tange aos Municípios e Estados, mas também em várias entidades privadas e filantrópicas que sobrevivem de defasados repasses do SUS.

Finalizando, é incontestável que os profissionais da enfermagem são historicamente mal remunerados. Essa nova legislação vai trazer um pouco mais de dignidade para a tão nobre ocupação de cuidar de quem está enfermo, mas isso deve ser feito de maneira estruturada, diminuindo os riscos de perca de emprego e piora na qualidade dos serviços de saúde.

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Publicada em 05.09.2022
* As opiniões expressas pelos autores não significam, necessariamente, que coincidam com as da Excola.