Por Francisco Gérson Marques de Lima
Professor na UFC, Doutor, Subprocurador-Geral do Trabalho
Um velho amigo, advogado das antigas, dizia-me que “os tribunais constituem uma caixa de surpresa. E onde há surpresa há esperança. Para os dois lados!”. A lição que o amigo transmitia era para que não nos acomodássemos com a jurisprudência; mas que, também, não nos desesperássemos quando a causa parecesse perdida. Sempre há esperança em qualquer causa judicial.
Trouxe esta lição comigo e a guardo até hoje.
Desde que a Constituição de 1988 foi promulgada, o tema das demissões imotivadas nas paraestatais é debatido administrativamente e no Judiciário. Os trabalhadores se submetem a concurso público, por exigência do art. 37, II, CF, mas os administradores querem tratá-los como “coisas” descartáveis, superdimensionando o art. 173, § 1º, II, CF, que confere o tratamento da CLT a esses empregados.
Inicialmente, o STF entendia que, apesar de concursados, os empregados “em empresa pública ou sociedade de economia mista podem ser dispensados sem motivação, porquanto aplicável a essas entidades o art. 7º, I, da Constituição” (1ª Turma, AI 648.453-AgR, Min. Ricardo Lewandowski, DJe 19.12.2007; 2ª Turma, AI 507.326-AgR, Min. Ellen Gracie, DJ 03.02.2006).
Esta questão recebeu especial atenção, todavia, em um julgamento originário do TRT-22ª Região, envolvendo a ECT (Correios), que passou pelo TST e foi parar no STF (RE 589998/PI), o qual acompanhou a tese daquela Corte Regional para concluir pela necessidade de motivação para a dispensa dos tais empregados, sem que isso implicasse no reconhecimento da estabilidade prevista no art. 41, CF (Min. Ricardo Lewandowski, DJe 12.09.2013). Após outros incidentes processuais e submetido o feito ao plenário, alguns anos depois, a tese consignada no Tema 131 foi: “A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT tem o dever jurídico de motivar, em ato formal, a demissão de seus empregados” (julg. 10.10.2018). Uma tese voltada a uma empresa específica, que tem por objeto atividade de relevância pública. Mas sinalizou a direção da jurisprudência do Supremo.
Evitava-se, assim, a perpetração de abusos, pessoalidades e uso do poder diretivo por razões políticas. Por algum tempo, pensou-se que a questão estava resolvida.
Não estava. Corria em paralelo o AI no RE 688267, referente ao Banco do Brasil (Ceará), em que o TRT-7ª Região seguia a primeira jurisprudência do STF, contrária à necessidade de motivação do ato rescisório. Ante recurso do Reclamante, o processo chegara ao TST, o qual negara provimento “a Agravo em Embargos em Recurso de Revista, mantendo decisão que julgara improcedente o pedido inicial, ao argumento de que não se exige da ora recorrida o dever de motivar a dispensa de seus empregados, nos termos do exercício do direito potestativo assegurado pelo artigo 173, § 1º, da Constituição Federal e pela Orientação Jurisprudencial 247 da SBDI-1 daquela Corte”. Em decisão monocrática prolatada em 16.09.2013, o Min. Teori Zavascki negou provimento ao recurso para reformar a decisão do TST, com fulcro no precedente RE 589998/PI. Houve novos recursos e muita discussão processual.
Em 14.12.2018, o STF por unanimidade, reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada no RE 688267. E, novamente, o Supremo teve de enfrentar a matéria, agora no Tema 1022.
Começou a sessão do dia 07.02.2024 com o voto do Relator contrário à tese da “motivação necessária”, rompendo a jurisprudência já firmada na Corte. A tese escancarava as portas para as dispensas sem razão alguma, a chamada “denúncia vazia”, com amplos poderes ao empregador para manter o empregado enquanto lhe fosse conveniente. Argumentos bem construídos, que levaram outros dois membros a acompanharem aquele voto. Aí, quando as esperanças já amofinavam, encontrando-se “os trabalhistas” aflitos e já cabisbaixos (talvez pelo histórico recente da Corte em Direito do Trabalho), os demais membros presentes do Tribunal, numa reviravolta ocorrida no dia seguinte, divergiram e votaram em sentido contrário, formando maioria em favor da necessidade de motivação nos atos de dispensa de trabalhadores nas paraestatais. Uma decisão que manteve a jurisprudência da Corte e que terá grande efeito na prática. A redação definitiva da tese será elaborada posteriormente.
Claro que o entendimento sobre o que seja “motivação” ainda renderá uma boa discussão, a qual será embasada pelos critérios de razoabilidade, impessoalidade e combate ao uso abusivo do direito potestativo.
Após o julgamento pelo STF, determinadas vozes se levantam contra a amplitude e indefinição do que seja “motivar”, para concluir que valerá qualquer justificativa pelo administrador das empresas públicas e sociedades de economia mista. Para esta corrente um tanto quanto pessimista (e reducionista), havendo justificativa, não importa o seu teor, estará atendido o comando do Supremo, que, aliás, é de pouca utilidade prática.
Não é bem assim. Primeiro, se não fosse a conclusão a que chegou o STF, esta discussão nem seria possível. Por isso, ela possui grande utilidade prática. Segundo, o conceito indeterminado não significa um papel em branco, em que cabe tudo que o empregador bem entenda. No julgamento mencionado, o Supremo Tribunal construiu algo na linha da Convenção 158-OIT, que veda a dispensa arbitrária ou sem justa causa. Na verdade, a Corte impôs, mais do que isso, um dever prévio ao administrador público, cuja inobservância pode gerar a reintegração com pagamento de salários e vantagens retroativas, não apenas uma “indenização compensatória” (art. 7º, I, CF).
Obviamente, o conteúdo da motivação não pode consistir em atos ilícitos, em inverdades, falseamento de situações, em atos administrativos com desvio de finalidade etc. Não haveria sentido algum se a interpretação da decisão do STF impossibilitasse a análise de determinados aspectos do mérito do ato administrativo e da sua lisura.
Ao motivar o ato administrativo, sabe-se, o administrador público, incluindo o das paraestatais, vincula-se às justificativas e razões que formula. Com a decisão do STF, estas razões poderão ser debatidas e colocadas em xeque, a começar pelo exame de sua veracidade. Sem o referido julgado, o trabalhador das paraestatais (abstraia-se o tema 131) não teria nenhuma possibilidade de discutir os motivos alegados pelo administrador. O descompasso da motivação com a real intenção da Administração terá consequências sobre a validade do ato e sobre denúncias contra os administradores. Então, não será um simples motivar por motivar, de forma vazia, inverídica ou com desdém às consequências, porque outro princípio poderia ser violado: o da moralidade, no qual se insere a eticidade administrativa. O princípio da moralidade é a expressão jurídica de determinados valores éticos da sociedade.
Após o término da votação no STF, “os trabalhistas” voltaram a respirar, aliviados. Afinal, foi uma vitória na batalha travada no Supremo, sem dúvida. Vamos ao próximo passo, porque a guerra pelos direitos sociais continua. Certamente, serão opostos Embargos de Declaração. E “os trabalhistas” estarão lá, novamente.
Então, relembrei do velho amigo advogado. Onde há campo para surpresas, há esperança. Mas, acrescento, é preciso ter um coração forte, porque a apreensão é grande, em meio a tantas reviravoltas.
Opinião jurídica, 09.02.2024.
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